Este conteúdo foi publicado originalmente no JOTA
A Revolta dos Barões – um (ou o maior) motivo que forçou o rei inglês João Sem Terra a assinar a Magna Carta em 1215 – teve como objetivo forçar o rei a respeitar as leis. Assim, podemos dizer que foi dado início ao Estado de Direito, um Estado em que todos estão submissos à lei.
A partir de então, o princípio do devido processo legal começou a passar por transformações substanciais, e, com o tempo, evoluiu e se consolidou, influenciando a formação dos sistemas jurídicos de várias nações.
No Brasil, o princípio do devido processo legal está previsto na Constituição de 1988, expressamente, no artigo 5º, incisos LIV e LV. Sua origem está na Constituição de 1934, que continha disposições que traziam a essência do princípio, como o artigo 113, que elencava uma série de direitos e garantias individuais.
A cláusula do devido processo legal é fruto de anos de construção histórica, e se origina na lei e da necessidade de todos se submeterem a ela. A partir desse princípio surgiram outros, como o devido processo legislativo, o devido processo licitatório. Para nós importa tratar da sua importância com a tecnologia no âmbito tributário.
É certo que o devido processo legal emergiu em um mundo pré-internet, em que a interação digital sequer era passível de estar na imaginação das pessoas.
Ao lado da construção histórica do princípio do devido processo legal, e a partir da década de 1990 com a chegada e o avanço da internet aos cidadãos, criou-se um ambiente híbrido em que a nossa civilização é marcada pela introdução e dependência de novas linguagens como a do software, colocando nossos direitos em situações mais complexas, especialmente, no que diz respeito ao devido processo legal e à legalidade.
Na atualidade, estamos vivendo a revolução tecnológica, em que diversos aspectos da vida cotidiana interagem com algoritmos. Muitos desses aspectos, no entanto, se relacionam com processos de tomadas de decisão e que sequer nos damos conta.
Para tangibilizar a questão, alguns exemplos: algoritmos decidem quais anúncios serão mostrados e para quais usuários, baseando-se em seu comportamento de navegação nas redes, na região que você mora ou horários de acesso à internet. Algoritmos fazem parte da vida do contribuinte: sistemas automatizados verificam inconsistências nas declarações de imposto de renda, sinalizando possíveis erros ou fraudes. Algoritmos verificam os pedidos de compensação de créditos tributários das empresas para homologar ou não a compensação.
Em nosso cotidiano, a interação com algoritmos é constante, apesar da invisibilidade de sua presença. Eles atuam como agentes que influenciam uma ampla gama de atividades diárias. Algoritmos podem ser considerados, de forma ampla, como o procedimento que fornece uma solução para um problema computacional proposto, e que deve atender aos requisitos da especificação criada para a tarefa. Algoritmos são linguagens auto executáveis, que podem “ler” e executar exatamente o que foi previsto.
Portanto, se o que for “previsto” atingir, direta ou indiretamente, os direitos dos cidadãos, tal previsão tem que estar descrita em lei, e a “solução” terá que ser questionável, por meio de um devido processo legal.
Porém, aqui reside uma questão: o nosso olhar de sociedade moderna tem valorizado a conveniência e a rapidez de serviços, para que processos automatizados atendam às nossas necessidades de forma imediata, tanto em serviços privados quanto públicos. Esta conveniência trazida pelos novos modelos de negócios digitais impacta profundamente nosso modo de estabelecer pensamento crítico. O trade-off geralmente é: a perda de controle e transparência sobre as decisões tomadas por algoritmos em troca de uma eficiência e conveniência inigualáveis.
Se, por um lado, os serviços se tornam mais ágeis e acessíveis, por outro, há um risco considerável de que erros, preconceitos e falta de responsabilidade na implementação dessas tecnologias resultem em injustiças e violações de direitos. A comodidade de realizar tarefas cotidianas com um simples toque na tela vem com a contrapartida de uma menor visibilidade e controle sobre os processos que governam nossas interações digitais, questionando assim a extensão do devido processo legal no contexto contemporâneo.
Esse avanço não mais será freado. Muito pelo contrário: a sociedade vai exigir cada vez mais rapidez e eficiência também em serviços públicos. É importante, porém, manter atenção à inclusão de tecnologias, especialmente no aspecto jurídico, garantindo que as conquistas de direitos sejam observadas com uma visão e interpretação ampliadas. Nesse sentido, é importante tratar do devido processo legal tecnológico, para questões tributárias, frente às mudanças que estão sendo propostas pela reforma tributária.
O devido processo tecnológico, conceito elaborado por Danielle Keats Citron[1], pode ser considerado uma extensão do princípio do devido processo legal tradicional, adaptado para a era digital, exigindo que os sistemas automatizados sejam justos, transparentes e revisáveis. Isso inclui garantir que os cidadãos possam contestar decisões automatizadas e que haja mecanismos claros para corrigir erros e abusos nestes processos.
Num ambiente dominado por algoritmos, o devido processo tecnológico é um pressuposto de que os cidadãos precisam ter transparência e a possibilidade de revisão de processos automatizados, com a finalidade de evitar que erros e ilegalidades passem despercebidos e não sejam corrigidos.
Para garantir a legitimidade, é crucial que todo o processo de implementação seja transparente, o que inclui – mas não se resume – à publicação de informações detalhadas sobre o funcionamento dos sistemas, os dados utilizados e o processo de realização final do processo e/ou tomada de decisões. Além disso, os órgãos públicos, que são detentores destas tecnologias, devem ser responsabilizados pela implementação e operação adequada e hígida dos sistemas automatizados. Auditorias independentes e mecanismos claros de revisão e correção de decisões, com a devida publicidade aos cidadãos, são essenciais.
Um exemplo contemporâneo no âmbito tributário, em que a sociedade poderá participar do processo de forma legítima, será a utilização do split payment na arrecadação dos novos tributos CBS/IBS.
No contexto da reforma tributária, a arrecadação por meio do split payment permitirá que transações comerciais tenham os tributos, automaticamente, divididos e direcionados ao fisco e aos fornecedores, simplificando todo o processo de apuração e pagamento do tributo.
Irá, na mesma operação, verificar a existência de créditos dos contribuintes de operações anteriores para a ocorrência – ou não – do split. É uma tecnologia que promete revolucionar o sistema tributário nacional, e que para além de aumentar a eficiência e reduzir a sonegação fiscal, também levanta questões que necessitam da aplicação do devido processo tecnológico.
Para que o split payment seja implementado de maneira transparente e com submissão ao princípio da legalidade e do devido processo legal, é fundamental que todos os critérios estejam previstos em lei, que possam ser objeto de consulta pública (transparência), que possam ser questionados por meio de um processo previsto em lei.
Destacamos os critérios que devem estar na lei: i) a forma e a origem da coleta de dados; ii) a divisão automática do pagamento; iii) desenho da operação; iv) e funcionamento da devolução de créditos aos contribuintes.
A sociedade deve entender como as transações são coletadas, divididas, e, como os tributos são calculados e direcionados. A transparência garante a confiança no sistema. O fisco deve também se responsabilizar pela operação do split payment e por quaisquer falhas ou desajustes no sistema. Processos claros para contestar cálculos de tributos e solicitar revisões são essenciais e devem estar previstos.
Portanto, é fundamental que: i) a implementação de tecnologias para quaisquer tipos de serviços ao cidadão esteja prevista em lei com a preservação dos direitos já existentes; e, ii) a interpretação dos direitos e deveres de toda a sociedade seja feita a partir da visão do contexto tecnológico, ou seja, o sistema positivo precisa atualizar a sua narrativa, trazendo um alargamento para conceituar o princípio do devido processo legal tecnológico.
Assim, a fim de garantir a legitimidade dessa etapa de transformação da arrecadação tributária, devem ser observados os seguintes pilares: transparência, responsabilidade e a garantia ao devido processo tecnológico.
É necessário que seja estabelecida a cláusula do devido processo tecnológico, que deve estar presente na lei complementar sobre a reforma tributária e em todas as legislações em que serviços públicos utilizem programação de serviços automatizados aos contribuintes, com ou sem inteligência artificial, e que possam interferir nos direitos dos cidadãos.
Em resumo, a tecnologia é uma peça-chave para a evolução da nossa civilização e do sistema tributário nacional, mas deve sempre estar subordinada à lei, garantindo que os avanços tecnológicos respeitem e protejam os direitos fundamentais de todos, dentre eles, o devido processo tecnológico.
Susy Gomes Hoffmann, sócia da área Tributária
Sílvia Piva, COO e sócia do GHBP Advogados
[1] Danielle Keats Citron, devido processo tecnológico, 85 Wash ULRev. 1249 (2008). Disponível em: https://openscholarship.wustl.edu/law_lawreview/vol85/iss6/2