Esta entrevista foi publicada originalmente no boletim da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) edição 3.204.
Nos últimos anos, o avanço das neurociências trouxe à tona uma nova perspectiva sobre o comportamento humano e a tomada de decisões. O conceito de neurodados, que se refere à coleta e análise de informações provenientes da atividade cerebral, vem ganhando destaque em diversas áreas, incluindo a psicologia, a medicina e, mais recentemente, o Direito.
A intersecção entre neurociência e legislação é conhecida como neurodireito e surge em resposta à necessidade de compreender como os dados neurológicos podem ser utilizados. À medida que a tecnologia avança e a capacidade de monitorar e interpretar a atividade cerebral se torna mais acessível, surgem questões éticas e legais que desafiam as normas tradicionais do Direito.
Cleber Mesquita dos Santos, Laura Porto e Sílvia Piva definem o que são os neurodados e neurodireitos e quais são os principais desafios legais e éticos da temática.
O que são neurodados e como eles diferem de outros tipos de dados pessoais?
Cleber Mesquita dos Santos: Neurodados são informações personalíssimas, como gostos, preferências, inclinações, tendências, sonhos, objetivos, que podem ser utilizadas “contra” as pessoas para mais facilmente manipulá-las enquanto consumidoras, oferecendo-lhes, de maneira irresistível ao seu inconsciente, um produto, uma viagem, um político, um partido, alguém para idolatrar ou alguém para odiar. Isso é oferecido pelas redes sociais com requintes de customização definida justamente a partir dos seus neurodados.
Laura Porto: Os neurodados são dados e informações obtidos diretamente do cérebro, por meio das sinapses, e, dessa forma, estão intimamente ligados à atividade neural e mental do indivíduo. Eles podem ser classificados como uma categoria de dados pessoais, mas têm características que os colocam em uma subcategoria distinta, devido à sua natureza altamente sensível e às suas implicações únicas para a privacidade e os direitos humanos.
Sílvia Piva: O termo “neurodados” refere-se aos dados que refletem diretamente as funções do cérebro humano. Esses dados são obtidos por meio de tecnologias que monitoram o funcionamento cerebral, como a ressonância magnética funcional (fMRI) e a eletroencefalografia (EEG). Podem ser considerados uma espécie de dado pessoal sensível, mas os neurodados trazem informações adicionais, que nem mesmo o indivíduo pode ter consciência de tê-las e o que efetivamente expressam. Esses dados são provenientes de neurotecnologias, tecnologias que registram ou até mesmo interferem na atividade cerebral, especialmente aquilo que chamamos de interface cérebro-computador. É um termo abrangente para descrever um grande espectro de métodos, sistemas e instrumentos que trazem conexão direta com o cérebro, cujas atividades possam ser registradas e influenciadas, com um nível de interação muito mais profundo do que outras tecnologias a que já temos acesso. Além disso, com o avanço da IA compondo as neurotecnologias, temos um nível cada vez mais avançado de decodificação dos neurodados.
Como os neurodireitos podem ser definidos e quais são os direitos fundamentais que eles buscam proteger?
Santos: O neurodireito é a ciência que surge de duas outras ciências, Direito e Neurociências (no plural), exatamente para regular a proteção de dados e, mais importante do que isso, a proteção da mente humana, da individualidade.
Os direitos humanos que o neurodireito protege são a privacidade mental, a integridade mental, a liberdade de pensamento e a continuidade psicológica.
Laura: Os neurodireitos são entendidos como um quadro normativo voltado para a proteção e a preservação do cérebro e da mente humana diante dos avanços das neurotecnologias, visando à proteção do cidadão quanto a sua privacidade, integridade, autonomia, acesso justo, proteção, entre outros.
Já é claro que o quadro normativo atual não contempla esse grande avanço tecnológico, necessitando de uma nova regulamentação sobre esse tema emergente.
Sílvia: Os neurodireitos podem ser definidos, em linhas gerais, como os princípios éticos, legais, sociais ou naturais de liberdade ou titularidade relacionados ao domínio cerebral e mental de uma pessoa, isto é, as regras fundamentais para a proteção e preservação dos dados provenientes do cérebro humano. Atualmente, os neurodireitos têm sido fortemente propagados por Rafael Yuste, que os considera como cinco principais:
- Direito à identidade pessoal: tem por intenção proteger a essência da identidade pessoal, garantindo que as neurotecnologias não mudem sua percepção de quem você é sem consentimento.
- Direito à agência: isto é, você mantém o controle total sobre suas decisões e ações, livre de manipulação externa por qualquer tecnologia.
- Direito à privacidade mental: seus pensamentos são privados. Ninguém pode acessar suas informações cerebrais sem sua permissão.
- Direito ao acesso equitativo: todos devem ter a mesma chance de usar neurotecnologias para melhorar habilidades, evitando desigualdades.
- Direito à proteção contra vieses algorítmicos: garante que as tecnologias tratem a todos de forma isonômica, sem reforçar preconceitos.
Atualmente, no Brasil, temos em tramitação a PEC nº 29/2023, que busca incluir, no art. 5º da Constituição Federal, que “o desenvolvimento científico e tecnológico assegurará a integridade mental e a transparência algorítmica, nos termos da lei”.
Quais são os principais desafios legais e éticos ao tentar regular a coleta e o uso de neurodados?
Santos: Os desafios legais e éticos decorrem de como regular e proteger hoje a pessoa humana de um futuro cada vez mais inimaginável e surpreendente. E o pior é que ainda há muito desconhecimento no meio jurídico, pois, muitas vezes, quando se tenta discutir esse assunto, muitos colegas juristas reputam que a discussão é sobre ficção científica, quando, na verdade, se trata de uma realidade premente.
Laura: Os neurodireitos são pensados principalmente para lidar com os grandes desafios jurídicos, mas principalmente éticos, trazidos por tecnologias que têm o potencial de acessar, monitorar ou modificar o funcionamento do cérebro humano. Esses desafios estão relacionados à proteção da privacidade, à autonomia dos indivíduos, ao consentimento, ao uso equitativo dessas tecnologias e às possíveis manipulações ou abusos. Com o rápido progresso em áreas como interfaces cérebro-computador, essas tecnologias oferecem grandes benefícios, mas também podem ameaçar a privacidade e a autonomia dos indivíduos se não forem regulamentadas adequadamente.
Sílvia: Primeiramente, precisamos tomar consciência do rápido avanço das neurotecnologias e da entrada, cada vez maior, de algoritmos de inteligência artificial (IA) em nosso cotidiano, desafiando a proteção jurídica até então disponível.
Atualmente, existe um mercado imenso voltado para os dispositivos vestíveis, como óculos para games, fones de ouvido, headbands voltados para entretenimento, saúde e segurança, que já estão coletando esse tipo de dados, e o avanço da IA, que permeia cada vez mais esse tipo de tecnologia, permite que informações possam ser obtidas a partir de objetivos específicos.
O desafio, no meu ponto de vista, deve ser direcionado a todos os stakeholders envolvidos com neurotecnologias: de acadêmicos, empresas desenvolvedoras a usuários, para entender como deve ser o uso responsável de tecnologias como essa. Discussões trazidas inclusive pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) apontam que esses dispositivos vestíveis, que usam dados cerebrais, serão os protagonistas da era pós-smartphone, e a promessa de desenvolvimento acelerado dessas tecnologias tem despertado, também, a consciência sobre a necessidade de proteção jurídica em questões como: dependência digital, especialmente entre crianças e adolescentes; necessidade de transparência sobre como os algoritmos são construídos e utilizados, a fim de minimizar o risco de “viés algorítmico”, uma situação em que algoritmos podem perpetuar desigualdades sociais e práticas discriminatórias; que a inovação seja desenvolvida de forma responsável, que permite que a coleta seja informada de forma transparente e didática ao usuário, mostrando para qual finalidade se destina e qual o objetivo da coleta.
Daí que, além da importância da menção expressa na legislação sobre esse tipo específico de coleta de dados provenientes de neurotecnologias, o desafio vai além, pois levanta questões éticas sobre como criar e utilizar tecnologias que sejam para o bem. Hoje, dados de qualquer natureza têm um elevadíssimo valor econômico, e a coleta de dados dessa importância pode impulsionar diversos segmentos com algo que nem sempre as pessoas entendem quando e por que estão fornecendo.